

2012:Eu ouvi dizer que as reformas em Villa Grimaldi terminaram durante o mandato da presidente Michelle Bachelet, que foi uma vítima de prisão e tortura no local. Seu pai, um general, foi morto pelas forças militares de Pinochet. O espaço foi renovado e provido de um centro de recursos e educação. Um áudio tour estava disponível em várias Línguas. Claramente, estava na hora de voltar lá – dessa vez sem um sobrevivente, para tentar entender como a presença e a voz afetaram o meu entendimento do local. Como antes, nenhum taxista sabia alguma coisa sobre o lugar e, finalmente, um deles simplesmente me deixou no endereço José Arrieta. A parte de fora parecia muito diferente, mais institucional, embora atenuada. Dentro, o aviso feito à mão no portão, me dizendo que eu deveria me comportar, não está mais lá. Um pedestal de aço mostrava a linha do tempo. Não há nenhuma referência a “nós” ou algum tipo de responsabilidade compartilhada.
Quem é o público para esse lugar todo reformado?
Villa Grimaldi, eu percebi, tinha sido incorporada à indústria de Sítios de Memória Internacional. E assim, outra camada foi acrescentada ao local. Eu peguei o headphone e o transmissor com uma jovem mulher no novo centro de recursos (serviços) e escolhi o tour em espanhol. O cômodo continha livros e mapas com informações – listando os centros de detenção em Santiago e identificando alguns dos oficiais que trabalharam lá. Assim como da última vez, não tinha ninguém. Por quê? Isso também, eu percebi, era uma pergunta histórica. Eu perguntei para a pessoa do centro se era permitido visitar os novos prédios. Ela falou que não tinha ninguém para me guiar, mas, percebendo que eu fiquei decepcionada, ela me deu as chaves e pediu que eu trancasse o prédio e as devolvesse quando eu tivesse terminado. Mesmo sem o aviso para me comportar, as chaves do chaveiro em forma de coração fizeram com que eu me sentisse muito responsável.

Coloquei o headphone e comecei minha caminhada. A voz quieta e rítmica do guia desconhecido – eu descobri depois – pertencia a uma atriz popular de telenovelas chilenas. Mas, sem saber disso, eu assumi que a voz jovem e fresca não havia sido afetada pela violência que ela estava descrevendo. As instruções eram claras desde o início – eu iria para os diferentes pontos no áudio tour, marcados na xerox do mapa.

O recorrido seguiu o mesmo caminho tomado por Matta – a maquete modelo feita à mão acabou, sendo substituída por uma réplica nova, brilhante e feita por máquinas. Tudo estava quebradiço e branco, como se estivesse profundamente congelado. Eu reconheci as construções, mas não o sentimento. As cores haviam sido drenadas, assim como toda a história humana.
Foi um tipo de vazio diferente do que eu senti na primeira vez em que fui lá – a brutalidade da demolição havia sido substituída pela negação da própria vida.
Eu vou para o portão de ferro trancado, mas dessa vez, por conta própria, eu paro para dar uma olhada na abertura. Agora, as paradas designadas são marcadas por placas com os números correspondentes ao áudio tour e por novos marcadores decretando a ordem de “consertar” no lugar.
Now, the designated stops are marked by plaques with the audio numbersand new tile markersenacting both the mandate to “fix” in place and update.


Mas há alguns prédios novos, trancados. Eu encontro a chave e entro. As caixas enfileirando a extensão do prédio quadrado exibem pedaços de metal que os militares prendiam nos corpos que eram jogados no oceano para que eles não boiassem. O botão amplificado pela lente de aumento mostra evidências, se é que ainda é necessário, do que aconteceu com os corpos. Agora, o local está muito mais organizado, os caminhos estão claramente marcados e iluminados – algumas das belezas da villa do século XIX foram restauradas com piscinas e diversas fontes. O lugar foi integrado, visual e politicamente, à vizinhança. As casas em volta certamente são visíveis. A vista que elas têm do parque deve ser muito agradável. O local de tortura foi domesticado – a dor visceral que eu senti com Matta foi substituída por repouso. Isso claramente transmite a sensação de um momento político diferente. Com a inauguração do novo Museu da Memória e dos Direitos Humanos no mesmo ano, parece que a contestação gerou uma época de aceitação e memorialização.
Posteriormente, ao olhar atrás dos prédios, eu vejo todos os materiais originais feitos à mão empilhados, em baixo de uma lona, dentro de um galpão atrás de um edifício.


Os nomes dos mortos sangraram no aviso, lembrando-nos que “o esquecimento é cheio de memória”. A memória, logicamente, é cheia de esquecimento também.
Eu me sinto muito sozinha ao continuar a caminhada e, como antes, fico me perguntando o que eu estou fazendo lá. Se Matta precisava que eu “presenciasse” e “acompanhasse”, eu percebi agora o quanto eu precisava que ele vivesse Villa Grimaldi. Eu mexo nos botões do gravador digital e me sinto boba por estar usando o headphone, mesmo com o lugar vazio. Fico impaciente na medida em que a voz me conta, sem esboçar emoções, sobre os atos políticos que levaram à criação desse centro de tortura. Os detalhes – os nomes dos generais, de organizações e por aí vai – me sobrepunham. Eu me percebo cara a cara com a História e sinto falta da escala humana. Me vejo tentada a tirar o headphone, mas resisto. Quando o segmento do áudio termina, eu paro, procuro no mapa a próxima parada e vou em direção a ela.
E continuo andando. A voz ao mesmo tempo macia e ríspida do áudio, que cita vários testemunhos, dá muito mais detalhes do que Matta deu. Há mais datas, figuras e fatos. A fragmentação das informações em pequenas partes faz sentido, é claro – supondo que o ouvinte terá tempo de se mover de um lugar para o outro. Eu vago enquanto ouço e me sinto livre agora para entrar na “Casas Chile” e dar uma olhada. Eu tiro uma foto e fico ponderando o que estou fazendo. Essa foto prova que eu estou aqui? Ou que eu estive lá? Mas onde? Essa réplica não fez parte do centro de tortura que eu estou visitando ostensivamente, sabendo bem que o centro de detenção, os objetos e as pessoas se foram há muito tempo. Eu continuo no caminho designado e ouço. Os segmentos são perturbadores, não só no seu conteúdo como também na sua fragmentação. Eles começam e terminam abruptamente – normalmente depois de uma parte particularmente interessante ou perturbadora.
Patio das Betúnias – era permitido aos homens sentar no banco ao ar livre por alguns minutos por dia sob supervisão rígida. Como não podiam ver, eles dependiam do olfato e do código secreto de sons que eles desenvolveram para se comunicar. Espere, diga mais! Mas o áudio termina aí.
Salas e Celas de Tortura – as celas das mulheres tinham uma janela que permitia que elas vissem os homens sendo levados para as salas de tortura. Elas conseguiam identificar os homens e seus torturadores. A sala ao lado delas se chamava parrilla (ou grelha), onde os prisioneiros eram despidos, amarrados em camas de metal e torturados com eletricidade. Fim da seção. Não, pega leve comigo!
O mesmo tom desinteressado fala sobre uma brutalidade inimaginável e descreve e voz, parecida com a de Edith Piaf, de uma prisioneira que cantava para abafar os gritos de tortura. Mesmo quando a voz do áudio cita testemunhos específicos, não há mudança em seu tom. Conforme vou caminhando, a voz chama a atenção para o jardim de rosas, plantadas em homenagem às vítimas mulheres.

Sobreviventes falaram sobre terem sentido o cheiro de rosas no complexo, o que fez parecer justo nomear cada flor com o nome de uma mulher que morreu ali. Novamente, a necessidade de individualizar o terror.
Eu compreendo os fatos, mas acho difícil me identificar com os eventos e com o espaço. A voz não fala comigo e eu acho a falta de sincronia entre o tom dela e a história que está sendo contada distrativo. É como se pudéssemos separar os diferentes momentos, rotinas e espaços. As pausas entre os segmentos, também, parecem bem diferentes da narrativa de Matta. Os silêncios dele eram cheios de memória. Seu rosto, corpo e humor transmitiam seu jeito de pensar e o seu balanço afetivo.
Eu não consigo identificar os silêncios – eles eram simplesmente nada, nem mesmo uma fita de áudio.
Se o esquecimento e o silêncio são cheios de memória, cheios de vida, o áudio tem dificuldade em capturar essa vida. Eu me senti diligente, mas não envolvida, enquanto seguia a voz ao redor de Villa Grimaldi. Foi uma experiência pedagógica; um exercício físico em Nunca Mais.
O que esse tour pede de mim? A voz agradece a minha visita. Ela explica que Villa Grimaldi é um traço material e simbólico do Terrorismo de Estado de Augusto Pinochet. A explicação claramente mostra a prática criminosa ligada às políticas econômicas neoliberais. Ela fala que a visita é uma volta ao passado. Mesmo assim, “nós esperamos” (diz a voz não identificada) que isso promova uma reflexão sobre o presente e um ímpeto para acabar com os abusos dos direitos humanos em todo o mundo. Se “eu” estou interessada em saber mais, então, por favor, visite a página da web etc. Ela me dá também um número de celular.
Eu levo o headphone de volta ao escritório e pergunto à mulher na recepção sobre a narração do áudio. Ela pensou que tinham escolhido uma atriz jovem sem nenhuma ligação direta ao passado violento porque eles queriam que as novas gerações pudessem se identificar.
Villa Grimaldi, então, não é mais sobre Matta, trauma e justiça.
É sobre fazer a próxima geração entender a sua história. Isso, então, é o próprio futuro previsto por Matta em seu livreto, mas ele não faz parte desse novo momento pós – sobreviventes. A memória foi realizada e agora as frentes de batalha foram desenhadas diferentemente. Com Bachelet sem o cargo político depois da proibição constitucional de reeleição sequencial, o homem de negócios de direita Sebastián Piñera virou presidente em 2010. Villa Grimaldi e o Museu da Memória perderam quase metade da sua verba operacional. Eu passo um tempo conversando com a mulher no Centro de Visitantes. Seu pai foi um prisioneiro em Villa Grimaldi que nunca falou sobre sua experiência lá, embora ele tenha voltado ao sítio de memória algumas vezes. O repouso oferecido pela domesticação de Villa Grimaldi e pela voz tranquilizante não é tão imperturbável quanto parece. Esses ainda são espaços contraditórios, presentes contraditórios e passados contraditórios.